Cearense mora no Rio de Janeiro há mais de 15 anos (FOTO: Arquivo Pessoal)
O
sonho da estabilidade financeira virou realidade para a cearense Bruna Marx aos
17 anos de idade. Estudou, passou em um concurso público e teve de assumir o
emprego no Rio de Janeiro, longe de tudo que hoje lhe dá saudade. Tapioca, baião
de dois com nata, rapadura e farinha d’água ficaram para trás, assim como sua
família, contrária a todas as decisões por uma simples particularidade: Bruna
é, ou era, um homem.
Na
Cidade Maravilhosa, isso virou apenas um detalhe. Se destacou pelo trabalho,
empenho e caráter, assumindo inclusive funções de confiança. Mas, há um ano, a
transgênero começou a tomar hormônios para adotar
características físicas femininas. “Ainda não me reconhecia na frente do
espelho. Surgiu, portanto, o conflito de viver apenas para ter, e não ser”.
A
decisão, tomada com a ajuda do parceiro, Gustavo Benevides, foi difícil. E o
preço, mais caro ainda: o constrangimento de uma aposentadoria compulsória.
“Enquanto pessoa do sexo masculino estou amparada pelas normas internas de
onde trabalho. Mas, a partir do momento que apresento o Transtorno de
Identidade de Gênero, sou considerada incapaz de desempenhar minhas funções e
suas demandas específicas dentro do órgão do qual faço parte”, explica.
O transtorno de identidade de gênero (TIG) – ou transsexualismo –
caracteriza-se por uma forte identificação com o gênero oposto, por um
desconforto persistente com o próprio sexo e por um sentimento de inadequação
no papel social deste sexo. Trata-se de uma condição que causa um sofrimento
psicológico clinicamente significativo e prejuízos no funcionamento social,
ocupacional ou em outras áreas importantes da vida de um indivíduo.
À
medida que os hormônios surtem efeito no corpo de Bruna, hoje com 33 anos,
menos normal volta a se tornar o seu dia a dia. Tudo o que queria era continuar
acordando todos os dias às 6h para trabalhar, sair às 17h e correr para a
academia. Ainda desejaria chegar a casa, preparar o jantar e esperar o
namorado. A espera era uma vitória diária por mais um dia sem ser tratada como
diferente.
“Estou
tentando lidar da melhor maneira possível. Eu me identifico com o
gênero feminino, pois é o que mais se aproxima da forma como me vejo e me sinto,
por isso a necessidade de mudar o meu corpo”, revela.
Do Ceará ao Rio de Janeiro
O nome de batismo ela rejeita e sequer gostar de revelar. Sempre enfrentou, no entanto, a punição da sociedade por ser supostamente diferente da maioria. A falta de legislação específica para casos como o de Bruna deixa pessoas à margem do conceito de cidadania. E ela não escolheu ser assim.
O nome de batismo ela rejeita e sequer gostar de revelar. Sempre enfrentou, no entanto, a punição da sociedade por ser supostamente diferente da maioria. A falta de legislação específica para casos como o de Bruna deixa pessoas à margem do conceito de cidadania. E ela não escolheu ser assim.
Quando
ainda morava em Fortaleza, apareceram as primeiras características consideradas
desapropriadas para o comportamento de um menino. Era meiga, super educada e
tímida.
“Nos
meus 5 anos de idade, foi a primeira vez que ouvi a palavra ‘veadinho’. Era
reprimida por meus pais, que justificavam como proteção. Ia aos cultos
obrigada, ouvia ameaças de ser lançada no inferno, de ser pecadora e
amaldiçoada por algo que eu ainda nem entendia direito, que para mim era
natural. Não via maldade nisso”, lembra.
Com
o passar do tempo, o preconceito das pessoas foi aumentando. Na adolescência,
começou a ser cobrada a se submeter a um enquadramento social. “Ouvi coisas
absurdas e que me machucavam muito, sem eu saber o motivo de tanto ódio”.
Foi
na Cidade Maravilhosa que realizou os sonhos de assistir ao Carnaval, estar nos
lugares onde suas novelas preferidas eram gravadas, e o melhor de tudo: começar
a se sentir vista de igual para igual. Construiu nome limpo e digno.
A
transgênero conquistou espaço no mundo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros), sendo reconhecida como uma expressiva
personalidade no meio. Mas ainda existiam obstáculos para uma vida feliz de
fato.
O
mais difícil para Bruna foi assumir que não era quem pensava que fosse e
ter de fazer a transição. Não, ela não nasceu no corpo errado – como muitos
dizem –, mas foi necessário haver adequação na forma como se vê para a forma
como queria que as pessoas a vissem. “A partir daí, comecei o tratamento
hormonal e acompanhamento psiquiátrico e psicológico para chegar ao ponto que
desejava. A opção de mudar ou não é muito pessoal e depende de cada um. Cada um
sabe o que está disposto a passar para ser quem é”.
Para
a decisão, apoio é o que não lhe falta. Há 2 anos, Bruna Marx mora com o
estudante de Educação Física Gustavo Benevides, de 20 anos. O primeiro namorado
da transgênero e seu grande companheiro. “Pensei que jamais encontraria alguém
disposto a enfrentar todo o preconceito que as pessoas trans passam. E, por
consequência, que ele também passaria”, desabafa.
Benevides
teve de sair de casa após a família descobrir o namoro. Foi um verdadeiro
alvoroço. “Havia acabado há pouco um relacionamento heterossexual. Minha vida
deu uma virada total. Mas queremos e gostamos de ficar juntos. Não nos
preocupamos com o que os outros pensam. Estamos apenas preocupados em construir
um futuro juntos”, afirma o estudante.
A vida depois da transição
Tudo
o que Bruna passou, sejam coisas boas ou ruins, formaram o que ela é hoje. A
transgênero se diz orgulhosa por todos os ‘nãos’ que ouviu e pelas portas que
foram fechadas no caminho. “Tudo isso me fez querer lutar sem me importar com
as consequências. Não podia me dar ao luxo de deixar a vida passar em vão. Creio
que sou feliz e abençoada porque fui forte”.
Depois
de assumir a identidade feminina, após a aposentadoria, Bruna pretende renascer
para a vida. “Quando concluir minha transição – não pretendo fazer
mudança de sexo –, vou retomar a faculdade, me informar e me engajar
na luta contra a homofobia”.
A
luta contra a legislação ela pode ter perdido, tendo que “abandonar” o emprego
conquistado com tanta determinação. A nova identidade, conforme seus desejos,
não a impedirá, entretanto, de continuar empenhada contra o que considera
injusto e desigual.
A foto no RG será apenas uma lembrança do que foi no
passado, mas Bruna continuará sendo aquela que ainda mantém contato com os
amigos do Ceará e que faz questão de citá-los para lembrar que não será outra
pessoa.
“Minha
sexualidade deixou de ser algo relevante. Agora acredito em mim e no meu
potencial”, orgulha-se.
Fonte
Tribuna do Ceará
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