Antes de tecer meus comentários, porém, é preciso
ressaltar que só devo ter visto uns 15 capítulos da novela toda, ainda assim
pela metade e jogando sueca no IPad. Logo, não sou profundo conhecedor da
causa.
Comecemos pelo óbvio: poucas vezes se viu um show de
imoralidades como nessa novela. Parece que cada personagem que merecia nosso
repúdio era tratado como herói. Deixo o melhor para o final. Vamos ao que me
lembro.
A mãe da Valdirene, Márcia, é uma ótima pessoa, cheia
de boas intenções, com um coração enorme, que só quer o melhor para a filha. E
isso significa passar a novela toda insistindo para que ela desse o golpe da barriga e fisgasse um cara rico. Uma mãe
e tanto! Quanto amor, quanta nobreza de caráter.
O Thales é um escritor romântico, mas que é
apaixonado por uma víbora que só pensa em dinheiro e não mede esforços para
obtê-lo, jogando o namorado no colo das belas ruivas ricas em busca do vil
metal. Thales acaba se casando com uma delas, dois pombinhos apaixonados, e
cheios de dignidade. O amor salva, sempre.
O quarteto formado por Michel, Patrícia, Sílvia e
Guto passa a novela toda pensando apenas em sexo, se traindo, voltando, traindo
mais um pouco, e todos mui amigos no final, dando alfinetadas maliciosas por
pura brincadeira. Promiscuidade é pouco para descrever o joguinho cansativo da
turma.
Rafael é um ótimo rapaz que se apaixonou por uma
autista (que não se comporta como uma de forma alguma). Em vez de ser visto
como um pervertido que abusa de uma incapaz, é a melhor pessoa do mundo.
Advogado supostamente inteligente, não consegue trocar 5 frases direito com a
namorada, mas quem liga? O amor é lindo.
Pérsio flertava com o terrorismo islâmico, mas se
encanta com uma judia, e novamente o amor salva tudo. Se os pais dela ficam com
o pé atrás, não aprovam o namoro ou se mostram incomodados com o passado do
rapaz, isso só pode ser preconceito, claro. Ora, quem nunca quis jogar umas
bombinhas nos outros porque são de religiões diferentes?
E por aí vai. Não vou me alongar, por falta de
memória ou para não ficar cansativo. Adiantamos o filme até chegar na família
rica e mais desestruturada da história das novelas. César é um canalha completo
e Pilar, que parecia legal, planejou um atentado para matar uma rival (tudo
sempre com a justificativa de que sentia muito ciúmes). Aquela casa parecia um
hospício!
Félix… ah, o Félix! A bicha má caiu nas graças do
público, e o autor teve de criar sua redenção. Um sujeito que nunca quis saber
do próprio filho, que jogou a própria sobrinha recém-nascida em uma caçamba
para morrer abandonada, que tentou matar uma pessoa pois ela havia descoberto
suas falcatruas, esse mesmo Félix virou a melhor pessoa do mundo e descobriu a
pureza na vida simples e pobre! Viva Rousseau!
Se até o Félix tem jeito, e não apenas de se
arrepender dos pecados, mas de se tornar a mais nobre alma do planeta (ao menos
da novela), então tudo sem salvação! Fernandinho Beira-Mar pode ser até o
próximo papa! Marcola pode ser canonizado um dia! Lula pode ser o presidente da
República! Ops…
Sei o que alguns vão dizer: é só ficção. Concordo.
Mas tem um detalhe: a própria novela assim não se vê. Fosse o caso, não cederia
a tanta pressão politicamente correta e não faria maçantes discursos
“educativos” o tempo todo. Logo, o autor sabe do papel não-ficcional e
“pedagógico” que novelas da Globo têm no Brasil, país com muitos ignorantes e
analfabetos. Só que usa isso para mensagens bem questionáveis, para dizer o
mínimo.
O único casal correto da novela, Bruno e Paloma, era
também o mais chato de todos. E, lógico, politicamente correto: a rica
empresária que assumiu o comando do hospital não liga para o lucro, e só pensa
em fazer caridade (detalhe: sem lucro, o hospital não poderia sobreviver,
inclusive para fazer caridades). Fica assim: se é decente, tem que ser
pentelho.
Chegamos, finalmente, ao tão falado beijo gay. Sério
que precisa causar tanta comoção assim? Soube que um deputado afetado deu
pulinhos de alegria. Menos. Não vou negar que representa uma conquista sob o
ponto de vista do movimento gay (longe de ser, então, uma conquista dos
brasileiros). Mas para que tanta euforia?
Duas coisas chamam a minha atenção: a turma
esquerdista do relativismo moral assiste novela da Globo! Apesar de a Rede
Globo ser vista como o demônio por eles, na hora em que tasca um beijinho de
gays na tela, a mesma galerinha vai ao delírio e passa a nutrir profunda paixão
pela Globo “progressista”. Curioso, não? A Globo é reacionária ou avançadinha?
É PIG ou JEG?
Segundo: os “tolerantes” querem impor, de qualquer
jeito, suas preferências aos demais, sem tolerar de fato o que pensam ou
sentem. Por que digo isso? Porque algumas pessoas podem, simplesmente, sentir
aversão natural à imagem de dois homens barbados se beijando. É um direito
deles.
Ninguém deve ser obrigado a achar “lindo” um beijo
entre dois homens. Não são pela “diversidade”? Então que aceitem a verdadeira
diversidade, inclusive com pessoas que não apreciam esteticamente um beijo
entre machos. Ou não? Ou vão tirar a máscara e admitir que são autoritários,
intolerantes, e querem um mundo onde todos pensem como vocês?
Dito isso, esse pessoal é tão militante que coloca
essa questão como prioritária. E eis que o beijo entre Félix e Niko passa a ser
a coisa mais importante do mundo, e dane-se quem era o Félix. Como liberal, que
aprendeu com o discurso de Martin Luther King Jr. algumas coisas, prefiro
julgar o caráter das pessoas, não a cor da pele ou a preferência sexual.
Jamais teria como herói alguém que tentou matar um
bebezinho (que era sua própria sobrinha, para adicionar insulto à injúria).
Qualquer pessoa razoável, creio eu, torceria para alguém assim acabar atrás das
grades na vida real. Mas muito brasileiro é sentimental demais, romântico, e
adora uma reviravolta incrível como a da bicha má. Confundem ter simpatia pelo
personagem engraçado com precisar admirar sua pessoa.
Aliás, Félix era engraçado porque era mau, porque
não ligava para os freios politicamente corretos que essa turma adora. Com
aquelas suas tiradas hereges e hilárias, do tipo “será que eu toquei bumbo no
Sermão da Montanha para merecer isso?”, ou “devo ter dançado pagode com a
Rainha de Sabá para merecer isso”, o personagem virou a sensação no país.
Se a novela continuasse após o “fim”, como seria o
“novo” Félix, agora totalmente reformado, bonzinho, perdoado até pelo “papi
soberano”? Seria um chato de galochas, ora! Seria, afinal, mais um ícone
perfeito do politicamente correto, que mede cada palavra para não ofender
ninguém. Imagino até que se tornaria um ecochato comedor de granola e tofu
orgânico, e ficaria abraçando árvores e aplaudindo o pôr do sol…
Em geral, essa é a visão que fiquei da novela de
Walcyr Carrasco. A redenção da bicha má é exagerada, soa falsa, impossível e
até ultrajante. Pau que ”nasce” tão torto nunca se endireita. Mas os
militantes do movimento gay não querem saber disso. Passaram a amar o Félix, só
porque protagonizou um beijo gay na novela. O problema de todo coletivista é
esse: coloca seu único critério de julgamento como o relevante, e tudo o mais
que vá para o inferno!
PS: Mateus Solano deixou sua marca como um dos
melhores atores que o Brasil já teve. Fica aqui meus parabéns por sua atuação
impecável. Carregou nas costas a audiência da novela, e merece esse
reconhecimento por seu talento fora de série.
Rodrigo Constantino (Colunista Veja)
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